13 de dez. de 2013

Fora do lugar



Da confortável poltrona do saguão do grande shopping a senhora observa a vitrine da ótica. Centenas de armações perfiladas como soldados em uma parada militar, similares, salvo pequenos detalhes. A cada um ou dois segundos humanos surgem no seu campo de visão, ela está de costas para o tumultuado corredor e faz anotações em um pequeno caderno espiral. Um menino entediado balança uma sacola de presente; decerto a compra do carrinho tão sonhado foi mais uma vez adiada em favor da festa de aniversário daquele chato colega do colégio. Um bebê dorme profundamente em meio ao intenso burburinho, deve estar guardando toda sua revolta para usar na adolescência. Dois negros retintos, quase azuis, daquele tipo longilíneo que só se encontra na África, atravessam sua frente, tão rápidos quanto duas gazelas na savana.
O casal de olhinhos puxados carregam nos ombros enormes mochilas e dois cajados; deslocados no espaço comercial são acompanhados pelos curiosos olhares urbanos. O segurança com um uniforme impecável e seu capacete esquisito dá lições de equilíbrio e graça em cima da minúscula plataforma assentada sobre duas rodas, na qual faz sua ronda. A desafortunada menina escorrega e cai no piso frio e imaculadamente branco para desespero da mãe estressada; ao lado um pai sereno ou desligado absorve o fato com a naturalidade que ele, o fato, possui. Ela observa atentamente a mocinha que passeia entre as estantes da ótica; há vinte minutos ela é a única consumidora a merecer a atenção das sonolentas vendedoras. Chinelos e sandálias são o que ela vê quando os olhos pesam sob o cansaço da espera e ela apoia o queixo no braço alto do seu assento.
A enorme loja de departamentos a sua frente chama a atenção pelo limitado número de clientes que entram e saem de mãos vazias; como pode sobreviver? Os turistas padronizados vestem tênis, bermuda e camiseta como o casal de meia idade que com passadas largas e sincronizadas esbanjam vigor, entusiasmo e a consciência tranquila dos que cumpriram o seu dever. Os nativos da terra se dividem em dois grupos bem distintos: americanos de jeitão desleixado, obesos e mal vestidos e hispânicos vaidosos que demonstram seu gosto duvidoso na fartura de adereços das mulheres e nos excêntricos fricotes que os rapazes ostentam no lugar da barba. As horas passam e a avalanche de gente se adensa atrás do frenético hábito que move a economia da metrópole. Mas aquele enorme templo do consumo é para ela inócuo, a senhora sabe desde sempre que só precisa de um colchão macio e água quente para seu conforto.
Do lado de fora o som da algazarra, dentro do ouvido interno ela ouve apenas o zumbido triste e nostálgico da longa espera. A mocinha, na ótica, agora fala e gesticula com a vendedora, parece que finalmente escolheu o modelo da sua armação. A mulher robotizada tenta insistentemente limpar a minúscula e indelével mancha do chão. O sol vaza pela claraboia, o facho de luz ilumina o carpete; a senhora percebe nele um remendo. Um modesto sinal de fragilidade no vigoroso sistema financeiro da terra símbolo do desperdício, o país do Tio Sam. São três horas da tarde, o celular toca no exato momento em que seu estômago denuncia a fome, a senhora sorri aliviada. Em poucos minutos ela nutre o corpo e a alma; seus netos surgem trazendo nos olhos todo o amor do mundo e nas mãos uma bandeja cheia de quentinhos rolinhos primavera, os seus preferidos.

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