A tristeza
habitava o lugar. Cada um, a seu modo, sentia a dor da rejeição. Ela não tinha
o direito de tomar uma decisão tão abrupta. Faltou consideração com aqueles que
tanto alegraram seus dias. Na prateleira acima da pia, perfilados, prontos para
ação, estavam os novos amigos. O germe de trigo e a farinha de linhaça,
acondicionados em potes de vidro novinhos, ao lado da altiva granola. Ocupam o
lugar dos biscoitos, agora embalados num saquinho de plástico, dentro da
gaveta, aguardando uma recaída. Na janela vasos novos; em vez do vermelho das
begônias e gerânios, havia agora o verde sabor da saúde em ramos de salvia e
alecrim; flor agora só de brócolis. Na fruteira, a onipresente banana, mantinha-se
discreta e neutra. O interior da geladeira estava em festa. Os formatos variados
iam do cilindro da cenoura e do pepino ao quase cônico aspecto da pêra,
passando pela esfera perfeita da laranja lima. E o que falar das cores, só o
pimentão tinha três. Um completo arco íris vegetal tomava conta do espaço, onde
até o inusitado roxo se incluía com a presença da ameixa e da berinjela. O
melão e a melancia
dominavam o cardápio de verão. Na gaveta de baixo,
protegidas do frio, alface, escarola, rúcula e agrião bolavam estratégias para
forçar seu consumo, antes de murcharem. O queijo cottage, muito sem graça,
pediu desculpas ao requeijão e se acomodou acabrunhado na prateleira da porta,
na companhia do iogurte desnatado.
A pretensiosa
água com sabor de kiwi foi acolhida pela generosa água de coco, que não gosta
de competir; o mate diet, muito antipático não se entendia com o chá verde, uma
aclamada novidade. O tomate e a cenoura divergiam sobre a melhor forma de serem
degustados, em suco ou salada. Enquanto isso, a maçã, um tanto masoquista, dizia
querer ser mordida por uns dentes bem afiados. No freezer, o recém-chegado atum,
se aliou ao filé de pescada para afrontar a triste picanha maturada, que jazia
na última prateleira a espera daquele churrasco adiado. O seguro peito de
frango, unanimidade nas dietas, apaziguava o conflito, dando boas vindas ao
camarão. A pizza caprichosa discursava em várias línguas para justificar a
preferência internacional. No armário de mantimentos o arroz parboilizado, o
talharim e o parafuso, amigos de longa data, hostilizavam de maneira acintosa a
quinoa e a massa integral. O feijão fazia careta para a soja e duvidava que ela
fosse emplacar. A lentilha tomava as dores da prima e resolvia apostar. O
coitado do açúcar refinado, empedrado dentro da lata, há tanto tempo rejeitado,
já nem ligava mais para o fato, suspirava sorumbático bem ao lado do pó de café.
A pipoca sobrevivente comemorava com alegria, a porção do cinema aos sábados, era
uma promessa mantida. No bar, o licor e a vodka se queixavam do vinho tinto,
que contava as vantagens do seu resveratrol. Até o laptop estranhava o novo
esquema, sentia muita saudade do croc - croc da batatinha palha, sua
companheira das noitadas.
No
meio de tanto desgosto, eis que surge a dona da casa gordinha que provocou toda
revolução. Dentro da bolsa, trazia uma barrinha de cereais e um pacote de
chicletes sem açúcar, que tomaram o lugar cativo da jujuba e do amendoim. Ela arruma
seu almoço no prato de sobremesa e prepara o maxilar para as trinta e cinco
mastigadas a serem dadas em cada garfada, para facilitar a digestão. Encarando
os desafetos, anuncia num tom carinhoso, que havia espaço para todos. Pede
apoio e comunica que, já na segunda fase, a dieta permitia, que alguns dos antigos
parceiros fossem, aos poucos, introduzidos. Firmado o compromisso, enfim reina
a paz na cozinha.
3 comentários:
Muito bom, criativo, contemporâneo e cheio de vida...
Que legal
Pelo menos nessas linhas bem escritas, as coisas funcionam como deveriam ser...pena tratar-se apenas de uma ficção, mas quem sabe...um dia as coisas podem mudar.
A propósito, muda essa foto do perfil que está um horror!!!
Bjs
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