21 de abr. de 2013

A revolta


A tristeza habitava o lugar. Cada um, a seu modo, sentia a dor da rejeição. Ela não tinha o direito de tomar uma decisão tão abrupta. Faltou consideração com aqueles que tanto alegraram seus dias. Na prateleira acima da pia, perfilados, prontos para ação, estavam os novos amigos. O germe de trigo e a farinha de linhaça, acondicionados em potes de vidro novinhos, ao lado da altiva granola. Ocupam o lugar dos biscoitos, agora embalados num saquinho de plástico, dentro da gaveta, aguardando uma recaída. Na janela vasos novos; em vez do vermelho das begônias e gerânios, havia agora o verde sabor da saúde em ramos de salvia e alecrim; flor agora só de brócolis. Na fruteira, a onipresente banana, mantinha-se discreta e neutra. O interior da geladeira estava em festa. Os formatos variados iam do cilindro da cenoura e do pepino ao quase cônico aspecto da pêra, passando pela esfera perfeita da laranja lima. E o que falar das cores, só o pimentão tinha três. Um completo arco íris vegetal tomava conta do espaço, onde até o inusitado roxo se incluía com a presença da ameixa e da berinjela. O melão e a melancia
dominavam o cardápio de verão. Na gaveta de baixo, protegidas do frio, alface, escarola, rúcula e agrião bolavam estratégias para forçar seu consumo, antes de murcharem. O queijo cottage, muito sem graça, pediu desculpas ao requeijão e se acomodou acabrunhado na prateleira da porta, na companhia do iogurte desnatado.

A pretensiosa água com sabor de kiwi foi acolhida pela generosa água de coco, que não gosta de competir; o mate diet, muito antipático não se entendia com o chá verde, uma aclamada novidade. O tomate e a cenoura divergiam sobre a melhor forma de serem degustados, em suco ou salada. Enquanto isso, a maçã, um tanto masoquista, dizia querer ser mordida por uns dentes bem afiados. No freezer, o recém-chegado atum, se aliou ao filé de pescada para afrontar a triste picanha maturada, que jazia na última prateleira a espera daquele churrasco adiado. O seguro peito de frango, unanimidade nas dietas, apaziguava o conflito, dando boas vindas ao camarão. A pizza caprichosa discursava em várias línguas para justificar a preferência internacional. No armário de mantimentos o arroz parboilizado, o talharim e o parafuso, amigos de longa data, hostilizavam de maneira acintosa a quinoa e a massa integral. O feijão fazia careta para a soja e duvidava que ela fosse emplacar. A lentilha tomava as dores da prima e resolvia apostar. O coitado do açúcar refinado, empedrado dentro da lata, há tanto tempo rejeitado, já nem ligava mais para o fato, suspirava sorumbático bem ao lado do pó de café. A pipoca sobrevivente comemorava com alegria, a porção do cinema aos sábados, era uma promessa mantida. No bar, o licor e a vodka se queixavam do vinho tinto, que contava as vantagens do seu resveratrol. Até o laptop estranhava o novo esquema, sentia muita saudade do croc - croc da batatinha palha, sua companheira das noitadas.

No meio de tanto desgosto, eis que surge a dona da casa gordinha que provocou toda revolução. Dentro da bolsa, trazia uma barrinha de cereais e um pacote de chicletes sem açúcar, que tomaram o lugar cativo da jujuba e do amendoim. Ela arruma seu almoço no prato de sobremesa e prepara o maxilar para as trinta e cinco mastigadas a serem dadas em cada garfada, para facilitar a digestão. Encarando os desafetos, anuncia num tom carinhoso, que havia espaço para todos. Pede apoio e comunica que, já na segunda fase, a dieta permitia, que alguns dos antigos parceiros fossem, aos poucos, introduzidos. Firmado o compromisso, enfim reina a paz na cozinha.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, criativo, contemporâneo e cheio de vida...

Anônimo disse...

Que legal

Anônimo disse...

Pelo menos nessas linhas bem escritas, as coisas funcionam como deveriam ser...pena tratar-se apenas de uma ficção, mas quem sabe...um dia as coisas podem mudar.
A propósito, muda essa foto do perfil que está um horror!!!
Bjs

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